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26 novembro 2010

O Ensino Superior e cooperação internacional - A Universidade Africana e o mundo (Conclusão)


SOBRE a questão dos estudos superiores em África e sua constituição em espaço universitário, ela ainda não se tornou um debate propriamente dito.
 
Mas importa levantar, pois a mesma tem a ver com o problema recorrente de se considerar que as Universidades Africanas actualmente não possuem a qualidade que se pretende, porque as estruturas socioeconómicas dos estados em que as mesmas se inserem são muito frágeis e atrasadas.
O conceito qualidade é um conceito abstracto e o mesmo deve poder ser caracterizado com contornos que permitam aferir comparativamente, e não como uma medida absoluta. Eu não posso pura e simplesmente afirmar que a Universidade tal ou tal tem qualidade, porque esta ou aquela se encontra inserida neste ou naquele país. De que ponto de partida eu estabeleço a minha aferição? Esta questão de qualidade tem sido debatida em outras áreas. Alguns colegas das universidades ocidentais na área das Letras, por exemplo, olham com muita desconfiança a produção literária dos africanos, considerando a literatura africana como sendo uma literatura sem arte e apresentam vários argumentos, entre os quais apontam a sua colagem demasiado evidente às questões históricas, sociológicas e políticas, como sendo matéria metafórica a preencher os seus conteúdos, longe do aprimoramento de linguagem, longe do enfoque filosófico e longe da preocupação com a estética. Em última análise, que não é comparável um romance africano a um romance francês, quando se fala da qualidade literária. Perante uma recorrência desta natureza, no mínimo o que devemos fazer é não entrar no debate, porque me parece que o raciocínio está inquinado à partida por presunção de superioridade cultural. Se trouxermos esta questão para a discussão sobre a qualidade das Universidades, colocando na balança de comparação as Universidades Africanas e as Universidades Ocidentais, estaremos perante um debate inútil. Relembro aqui aquilo que atrás disse sobre os estágios dos estudos superiores em função do estágio de cada grupo social. Bem sei que para trás as sociedades eram mais fechadas e o seu processo de desenvolvimento era mais endógeno do que exógeno, bem sei igualmente que as teorias da globalização tendem a pressionar a adopção das posturas em que a periferia deve adoptar os modelos do centro.
O MIT americano e a Universidade de Singapura estabeleceram um acordo de cooperação ao mais alto nível na produção de programas de pós-graduação. É um dado adquirido e todos aceitam o pressuposto de que os quadros produzidos nesta aliança são do maior valor mundial em termos de qualidade. Os factores que assim o determinam podem não ser eminentemente universitários ou de apuro científico ou técnico no que toca a competências, mas também aqueles que têm a ver com os altos valores cobrados, que podem ascender a quase meio milhão de dólares, e que, por isso, só as elites económicas e as empresas de grande podem aspirar ao ingresso nesses programas, reproduzindo modelos de aferição de auto-valorização. Os quadros produzidos pela Associação de MIT americana e da Universidade de Singapura não servem para a realidade africana. Assim, é natural que a Universidade de Singapura tenha modelos de formação que entrem em pé de igualdade com a MIT para produzir programas conjuntos de pós-graduação de ponta oferecidos a todo mundo. Contudo, já não se torna normal que uma Universidade Africana esteja em pé de igualdade com estas mesmas universidades, o que não quer dizer que a qualidade ou o modelo de qualidade seja necessariamente aquele que é oferecido pela Associação da Universidade de Singapura e a MIT e que nós, os Africanos, se não atingirmos esse patamar, estamos sem qualidade. Por isso, a questão da qualidade é sincrónica e contextual, ela deve ser vista em cada momento e em cada espaço, e naquele momento. Só esta postura nos vai permitir que, passo a passo, possamos de uma forma racional e com conhecimento de causa aspirar a patamares cada vez mais avançados com o avanço do conhecimento por nós próprios dominado.
Muitos países africanos, com vários recursos naturais, têm sido acusados de assinar contratos desastrosos para exploração desses mesmos recursos, porque aqueles que têm a responsabilidade de negociar os dossiês sobre o acesso a esses mesmos recursos, ou são corruptos ou, se não são corruptos, ignoram os mecanismos mais adequados para negociações vantajosas para a sua própria sociedade, por falta de preparação sobre os processos negociais. E, consequentemente, consideram correctas as propostas que a contraparte apresenta, que exercendo ao mesmo tempo o papel de jogadores e árbitros colocam na mesa. Isto é verdade, mas esta situação não resulta da falta de qualidade das nossas Universidades que devem ter formado previamente tais negociadores, mas sim do processo desfasado entre o acesso ao conhecimento do domínio da natureza e dos recursos naturais dos nossos países e aquilo que se passa nos países que demandam as nossas matérias-primas.
A história tem-nos demonstrado que sempre que se pretende queimar etapas, os efeitos negativos são maiores que os positivos e que as forças produtivas se devem desenvolver conforme a conjuntura. Quer isto dizer que se as nossas Universidades não estão ainda apetrechadas de modo a produzir conhecimento sobre a nossa realidade e riqueza natural e como consequência não estão preparadas para formar cidadãos que possam dominar as linguagens negociais ou execução de actividades nestas áreas, isso não significa que as Universidades não tenham qualidade, não têm qualidade sim para este dossiê concreto, porque o Estado, ele próprio, não se apetrechou para o efeito, ou não buscou soluções alternativas para se preparar para uma situação para a qual não estava prevenido.
No período pré-colonial, em África, houve actividades relacionadas com estudos superiores prósperos e reconhecidos pelo mundo então conhecido. É disso exemplo a Universidade de Tumbucto, no Mali, as Universidades do Cairo, em Alexandria, Ahzar, no Egipto e Karaouine, em Marrocos.
Além disso, investigações sobre a África Antiga dão-nos notícias de estudos avançados, incluindo em astronomia e navegação, dos povos que habitavam as margens do Índico, a Núbia, o Zimbabwe, o Uganda e o Quénia, coincidindo com grande movimentação de comércio entre os povos árabes, o norte de África e o Oriente e as regiões africanas que circundam os grandes lagos na zona do Índico. Contudo, as notícias da historiografia actual em voga informam-nos que as Universidades mais antigas são todas elas de origem europeia, tendo Bolonha como a mais antiga de todas. E uma das muitas razões para defender este ponto de vista, a principal, é de que as Universidades Europeias concederam graus académicos desde o início, que é uma das prerrogativas das Universidades, o que não se pode verificar relativamente àquelas outras atrás referidas. Sendo assim, como entender o avanço da ciência em todo o mundo se não no âmbito de estudos superiores, quer na Índia, na China, no mundo dos Incas e dos Astecas nas Américas?
A dominação dos centros do saber pelos agentes da globalização foi uma causa de retrocesso no desenvolvimento da investigação e da pesquisa científica das regiões dominadas. O poder militar não significa necessariamente também a posse de conhecimentos mais avançados da ciência e da filosofia. Por isso, a África Colonial, ao conceber as suas primeiras instituições de estudos superiores de natureza universitária, as mesmas apresentavam-se como instrumentos úteis, cuja função social visava fundamentalmente a produção de quadros que organizassem os estados colonizados como réplicas da mente, do sentimento e do olhar dos estados colonizadores.
A Universidade de Maquerere, no Uganda; a Universidade Lumubanche, no Congo; a Universidade Cocodie, na Costa do Marfim; a Universidade de Dakar, no Senegal, foram efectivamente das Universidades mais prestigiadas de África no período colonial e por elas passaram muitos dos intelectuais e líderes africanos, mas, surpreendentemente, a génese do Nacionalismo em África não surge em primeiro lugar a partir dessas Universidades, mas sim daqueles estudantes negros que foram estudar a Paris e Londres. Surpreendentemente também, estas mesmas Universidades perderam o seu fulgor após a independência dos respectivos países. Este pressuposto impõe-nos uma reflexão sobre a função das Universidades em África. Tenho para mim que a questão da qualidade é efectivamente mais um mito do que realidade, porque a realidade deve ser contextualizada e as nossas Universidades em África estão inseridas num contexto que exige delas uma dinâmica para responder a desafios que, se adequadamente enfrentados, concederiam às próprias Universidades o papel de vanguarda na luta pelo desenvolvimento dos nossos estados.
Tomemos, como exemplo, a recente crise financeira, económica e consequentemente social que surgiu no Ocidente, em primeiro lugar, nos Estados Unidos da América e que se estendeu para a Europa. A par de muitos políticos africanos que afirmaram placidamente que os seus países não seriam afectados por essa crise, as nossas Universidades demonstraram que não estavam preparadas para tirar conhecimento sobre esta mesma realidade. Alguns dos nossos docentes de Economia continuaram tranquilamente a transmitir elementos sobre economia e gestão, debitando as teorias daqueles que, no fundo, foram os responsáveis pelo surgimento da crise. Estes docentes não mostraram qualquer atenção para com o fenómeno e mecanicamente continuaram as suas tarefas rotineiras, como se nada tivesse acontecido ou estivesse a acontecer.
As nossas Universidades passam muitas vezes ao lado dos diversos temas em debate, nomeadamente as energias renováveis, o problema do clima, não produzindo qualquer mais valia que beneficie as nossas sociedades. No entanto, é a África o depositário das reservas mais significativas do mundo no que toca à energia, à floresta e à terra arável para a produção de alimentos.
Do meu ponto de vista, é como se o sistema de estudos superiores herdados do período colonial e que deveria ter sido transferido para o benefício da sociedade pós-colonial estivesse ainda a sentir efeitos da anestesia inculcada pelos colonizadores.
Nesta perspectiva, é como se, de uma forma geral, as nossas Universidades fossem um corpo estranho no contexto das próprias sociedades em que se inserem. Deste modo, de que maneira a Universidade Africana está em condições de poder encarar a questão da cooperação universitária?
Normalmente, quando se fala de cooperação universitária, quer-se dizer transferência de informação científica, transferência de informação tecnológica, circulação de estudantes, circulação de docentes, troca de bibliografia e realização de actividades de investigação científica conjunta, bem como outras actividades de extensão universitária e actividades extracurriculares.
Os nossos estados, de tão empobrecidos que se encontram, transmitem-nos esta postura de permanentes pedintes quando se relacionam com o mundo da cooperação internacional. Os potenciais parceiros são tidos como doadores, o que nos põe numa situação de receptores passivos, apesar de sermos nós a fornecer os factores do seu enriquecimento.
Perante esta postura e o discurso político subsequente, de uma forma geral todos os sectores da sociedade acabam por assumir uma atitude de anão perante os mecanismos de cooperação. Quer isto dizer que para além de não ter consciência real dentro da sociedade e do papel que a Universidade deve desempenhar, procurando exercer o seu munus através da derrogação do contacto produzido por outrem e mecanicamente assumido, a Universidade perdeu igualmente energia para poder dar algo de si no processo de troca, no contexto da cooperação.
Esta situação é das mais preocupantes quando analisamos a realidade das Universidades no contexto africano. Existe a Associação das Universidades Africanas com sede em Acra, no Gana. Pessoalmente integrei e participei como membro desta associação por mais de 8 anos, até me dar conta de que nada estava a acontecer e desisti. Os encontros regulares de reitores, cientistas, académicos, técnicos e administrativos que vão regularmente acontecendo no âmbito desta associação, sempre me pareceram como sendo uma oportunidade para se manter uma feira de vaidades e onde eram avivadas as rivalidades diversas, muitas delas de natureza regional e até quase clubista, tomadas de empréstimo sobre rivalidades alheias, cuja conflitualidade não está ainda resolvida. É por isso que as grandes conferências não são alojadas por esta Associação, mas sim, ou pelas agências da ONU da especialidade ou pelos parceiros de cooperação. Não existe em África uma voz de comando que polarize a discussão de questões de interesse académico que diga respeito aos Africanos.
O meu pessimismo leva-me a acreditar que as nossas instituições não estão ainda preparadas para criar as condições para uma efectiva cooperação multilateral, que considero mais eficaz porque redistribui as sinergias, potenciando-se mutuamente. Por outro lado, a ausência de uma voz que canalize os interesses das Universidades Africanas no mundo coloca-nos numa posição de desvantagem quando partimos para a modalidade de cooperação bilateral, sobretudo com as instituições mais poderosas do Norte.
Deste modo, o meu apelo, o meu repto, o meu desejo que aqui deixo é que a prioridade no capítulo da cooperação deve ser dada à cooperação entre as Universidades Africanas, sobretudo na modalidade multilateral. Nós devemos poder trocar informações, transferir informação científica, fazer circular os nossos estudantes e docentes, reconhecer mutuamente os graus académicos e sobretudo fazer sentir o nosso peso social perante o poder dos estados, devemos lutar em conjunto para aumentar o nosso peso específico no contexto global, devemos fazer sentir os nossos governantes que o ensino superior é a chave, não só para o desenvolvimento da sociedade, mas também para a aquisição de prestígio na produção de opiniões nos vários fora internacionais. A nossa cooperação com o Norte deve sobretudo pautar-se pela prudência de que numa relação desigual, a troca é também desigual e quase nunca o mais forte dá o maior quinhão ao mais fraco. A nossa postura dever ser, por isso, de atenção permanente na busca daquilo que é mais correcto e nos serve no contexto em que nos encontramos, para não cairmos na rotina de muitas instituições em África, que recebem os produtos enlatados e os consomem sem ler os prospectos de instruções. A Universidade tem obrigação de ser mais atenta, não só para si própria, mas para o resto da sociedade, porque é nela que estão alojados os estudos superiores.
Golando o poeta digo “Lanterna que vai à frente alumia duas vezes” isto é, alumia para a frente e para trás. Este é que deveria ser o papel da universidade no mundo e sobretudo em África, isto é, alumiar duas vezes.
  • Lourenço do Rosário - docente universitário e Reitor da Universidade A politécnica (colaboração)

O Ensino Superior e cooperação internacional (2)


OS processos globalizantes não são um fenómeno que se manifesta apenas na actividade da história da Humanidade. Partindo do princípio que a diversidade dos grupos sociais que se foram constituindo em Estados, quer de uma forma pacífica quer através de um processo bélico, estabelecem fronteiras, pode-se afirmar também que o equilíbrio dessas mesmas fronteiras se concretiza através de uma correlação de forças.
 
Essa correlação de forças pode resultar da aceitação tácita de que uns são mais fortes do que outros e que através de um sistema intrincado de diplomacia se estabelece o respeito e a estabilidade de cada espaço ou então através de um terror multifacetado, a partir da dominação militar. Assim, aqueles estados mais poderosos têm consequentemente a necessidade de possuir também formas mais avançadas de domínio do saber e muitas vezes procuram impor os seus modelos de organização dos centros de conhecimento aos estados mais fracos e esta imposição pode não ser feita pela força, bastando muitas vezes criar nos outros a percepção de que não há alternativa aos seus modelos.
Os estudos superiores, tal como os caracterizamos nas páginas anteriores, são um processo imanente de cada grupo social e os mesmos respondem ao grau de desenvolvimento em que cada grupo se encontra, preenchendo os requisitos que o comunicado da UNESCO citado actualiza.
Contudo, quando em situação horizontal de relações desiguais se provoca também a percepção da desigualdade de níveis no estágio em que se encontram os estudos superiores dos estados mais fracos face ao estágio desses mesmos estudos nos estados mais fortes, a questão da função social das instituições do Ensino Superior tem os seus factores de discussão pervertidos.
O debate está na ordem do dia: primeiro, os estudos superiores devem ser para as massas ou para a elite? Todos nós sabemos de uma forma empírica, à vista desarmada, que até este momento, os estados não conseguiram que todos os seus cidadãos atingissem ou atinjam os níveis superiores da educação, mas este facto, por si, não determina a elitização do sistema.
Em Moçambique, por exemplo, é dado adquirido que o acesso ao Ensino Superior é direito de todos os cidadãos, no entanto, este desiderato virtual não faz com que todos os cidadãos acedam a esse nível de ensino. Em Moçambique, o número de estudantes do ensino superior representa 0,9 porcento dos estudantes de todo o sistema de educação. As razões não se prendem apenas com a questão de políticas públicas, mas também pelo facto da fragilidade económica e financeira que não permite que o desejo de massificar o ensino superior se concretize, apesar de todos nós termos a consciência de que a opção do Estado Moçambicano é o Ensino Superior para as massas. Ter 80000 estudantes no nível superior, num universo de 20 milhões de cidadãos, pode demonstrar quão distante está o desejo e a concretização do desejo.
Porém, este facto não impede que no seio da sociedade moçambicana surjam opiniões de que se o Estado Moçambicano optar pela massificação do Ensino Superior estará a enterrar a cabeça na areia, tal como as avestruzes fazem perante um perigo eminente, porque efectivamente, ao longo da história da humanidade, sempre se comprovou que a educação superior se concretiza através de um processo de crivo, em que a elitização dos que acedem a esses níveis se torna natural. Desta forma, a função social da Educação Superior, com vista a produzir o conhecimento e formar o cidadão, é simultaneamente uma função que visa o desenvolvimento através da produção do conhecimento, mas visa também a formação do cidadão que melhor sirva aos interesses do seu Estado.
Se considerarmos a consciência que as instituições do Educação Superior têm do seu peso específico no contexto das várias organizações e instituições em cada estado, é natural que a questão da autonomia académica e científica seja uma bandeira para este espaço da educação.
Desde a antiguidade que a relação entre a organização do estado e as instituições do estado e as elites do saber sempre mantiveram uma relação de mútua emulação que vai de interesse e atracção para uma forte rejeição, quando as diversas especialidades de estudos superiores começaram a sentir-se acossadas pelo poder, no sentido de lhes controlar o produto, que era o conhecimento, e controlar o pensamento dos seus membros, bem como dos seus formandos. Foi assim que as mesmas decidiram pouco a pouco a juntar-se e formar corporações a que denominam de UNIVERSIDADE, Universitas Magistrorum et Almnrum, ou seja, “O Universo dos Mestres e dos Discípulos”.
As universidades surgem como uma associação livre a partir das diversas áreas do saber do estudo superior, em que mestres e discípulos, da investigação e pesquisa, professores e alunos da formação, se juntaram para perseguirem objectivos comuns. E o lema era “Servir o Estado e a sociedade sim, mas com liberdade”.
Da mesma forma que o comunicado de 2009, a UNESCO dá um enfoque específico à criação do sentimento da cidadania através de uma crítica construtiva, como sendo o elemento fundamental do Ensino Superior. O princípio de autonomia e liberdade universitária é um património inviolável de dimensão mundial.
Na história do ocidente, sobretudo na cultura judaico cristã, nós verificamos o esforço que as outras corporações e o poder do estado fizeram para controlar as universidades. Hoje, a História fala-nos de que as universidades tiveram a sua origem junto das organizações religiosas, nomeadamente da Igreja, e nós assimilamos esta informação como sendo genuína. Contudo, um olhar mais atento há-de despertar-nos para o facto de haver uma profunda contradição entre a essência das universidades, face aos objectivos que perseguem relativamente à autonomia e liberdade, comparativamente à essência dogmática das religiões, bem como temos verificado na História, diversas tentativas de transformar as universidades em centros de produção de comissários políticos ou também e centro de promoção profissional.
As universidades guardaram dentro de si a memória da sua origem, isto é, corporações livres, autónomas em relação a qualquer poder, mas ao mesmo tempo leais à sua própria sociedade. Em última análise, um aliado fundamental dos diversos poderes para o desenvolvimento dessa sociedade que a todos diz respeito. O anichamento das universidades nas organizações religiosas resulta de um processo histórico que nos permite observar de que forma é que este nível de estudos foi sendo aproveitado e dominado pelos diversos poderes na História da Humanidade.
Nos últimos séculos, se considerarmos essencialmente os últimos 4 séculos: o Mercantilismo, o Século das Luzes, a Revolução Burguesa, a Revolução Industrial, a Revolução Bolchevique, o Neoliberalismo e por aí acima, havemos de ver que cada uma destas fases históricas procura puxar para si o controlo dos estudos superiores, travestindo às universidades à sua imagem e semelhança. De certa forma, podemos considerar que há uma face chamada universidade, que cede, mas a memória histórica da origem das universidades permanece e atravessa todas as vicissitudes que vai encontrando ao longo da História. Com isto, podemos afirmar que o debate entre se a universidade é o espaço de elite ou de massas é um debate de premissas silogísticas, porque é a essência da Humanidade, quando se organiza um grupo social, que a mesma crie um sistema organizacional e os estudos superiores fazem parte desse sistema organizacional com uma função de vanguarda na busca permanente do conhecimento e na formação adequada dos cidadãos para perseguir com ética e com competência os caminhos do desenvolvimento.
No fundo, as universidades são aparentemente um espaço da elite, mas não são uma elite económica, nem elite empresarial, nem elite política, militar, mas sim uma elite estritamente intelectual e académica, que não poucas vezes tem os recursos de sobrevivência estritamente necessários para o dia-a-dia. Quer isto dizer que os académicos, que são fundo são os operadores do espaço universitário, eles próprios não constituem elite, no sentido dos vários factores acima apresentados, mas sim, uma elite especial, por desenvolver actividades também especiais, na sociedade. Ao espaço universitário devem aceder os mais capazes, porque é com eles que a sociedade pode avançar. A elitização dos cidadãos não se faz, por isso, no espaço do ensino superior, mas sim fora desse mesmo espaço, porque dentro dele, o cidadão em formação é um simples aprendiz. Ele pode ser cooptado cá fora e integrar as várias elites do poder, mas este não é um problema da universidade.
Consideramos, portanto, que o debate universidade para as massas ou para a elite pode perfeitamente ser neutralizado, se tivermos em conta que todo o cidadão aspira um dia ter acesso a esse mesmo espaço e que a não concretização dessa mesma aspiração não depende apenas dele próprio, mas sobretudo da forma como a sua sociedade está organizada.
  • Lourenço do Rosário - Docente Universitário e Reitor da Universidade A Politécnica (colaboração)
(Idem) no dia 25 de Novembro de 2010
 
 
 

O Ensino Superior e cooperação internacional (1)

Do Professor Lourenço do Rosário
Docente Universitário e Reitor da
Universidade A Politécnica

NOS tempos que correm, habituámo-nos a designar de uma forma quase que indistinta os vários segmentos e natureza das várias categorias provedoras dos estudos superiores. Assim, designamos, praticamente sem qualquer crivo, as instituições de ensino superior como sendo escolas superiores ou institutos de educação superior, para além dos seus derivados e ou associados, como centros e faculdades.
A diluição em apreço não significa necessariamente que estas designações se estão a aproximar do grau zero e que a meta é que todas elas sejam a mesma coisa, isto é, os desígnios de uma Escola Superior serão os mesmos de um Instituto e que, em última análise, tanto faz e que tudo são as mesmas formas ou categorias de Universidade. Por isso, a fórmula Instituições de Ensino Superior parece niveladora, embora a mesma esteja prenhe de equívocos semânticos na sua relação entre a natureza, as características e os objectivos de cada e de todas elas em conjunto.
O homem, desde os primórdios do tempo, procurou sempre adquirir e dominar o conhecimento que lhe permitisse melhor sobreviver, na sua relação com a natureza e na compreensão da sua própria vida, quer na vertente singular, isto é, como indivíduo, quer como ser colectivo, visto a sua natureza ser gregária.
E o método de observação, hipóteses, experimentação para posterior adopção de teorias sufragadoras da cientificidade de algumas práticas empíricas tem a idade do próprio homem. É entre a física e a metafísica que devemos colocar o pulsar permanente do homem na história do estudo de como dominar a natureza e o entendimento sobre a vida. As demais áreas do conhecimento, tais como a Biologia, a Medicina, as diversas formulações Matemáticas, bem como os estudos de natureza social e humana e, por fim, a reflexão filosófica e teológica são progressos deste primeiro passo, cujo enfoque é na Física e na Metafísica.
A descoberta do fogo, por exemplo, pode ter sido casual e o seu uso por muito tempo perfeitamente empírico, mas o seu domínio e sua utilização no avanço das diversas tecnologias decorrentes do fogo, tais como a fundição, a pirotecnia e consequentes derivados, nomeadamente ao fabrico de armas, utensílios domésticos e agrícolas, bem como o seu papel na passagem do cru para o cozido, deveu-se à utilização do sistema metodológico que ainda hoje usamos nas ciências.
Na organização social, há, naturalmente, uma rigorosa distribuição de tarefas, por isso, existe aquele grupo que se ocupa do estudo dos fenómenos, de modo a produzir conhecimento que proporciona conforto físico e espiritual à sociedade no seu todo e a cada membro. Esse grupo ocupa-se igualmente da formação dos membros como um todo e garante a reprodução de alguns que darão continuidade à sua função. Desde que a criança nasce, ela é enquadrada num sistema iniciático de aprendizagem, acedendo ao conhecimento já produzido e dominado, quer a nível social, bem como ao nível familiar, nos fora público e privado. É esse conjunto de saberes que permite balizar as fronteiras de identidade de cada grupo e de identificação social e cultural de cada indivíduo ou família com o seu próprio grupo social. Por isso, devemos também escalonar o sistema de acesso ao conhecimento, conforme a idade e o processo de aprendizagem. E aqueles que conseguem ter acesso aos escalões do aprendizado com grau de dificuldade maior, ocuparão naturalmente posições mais destacadas na hierarquia social, nas várias vertentes de ocupação que a própria sociedade proporciona. Assim, desde sempre, o escalonamento do processo de aprendizagem e de acesso ao conhecimento tem em consideração um nível superior dos estudos na escola organizada para a vida, pública e privada, como por exemplo, nas lides pela produção de alimentos, na caça, contra as intempéries da natureza, na construção dos abrigos, na defesa contra animais ferozes ou contra o inimigo humano, na busca do entendimento sobre a própria vida perante a inexorável fatalidade da morte, na definição de obrigações e interdições que regulem as relações sociais e metafísicas, na busca da cura física e espiritual das maleitas e demais capítulos do conhecimento. Esta escola da vida foi sempre estruturada para responder ao estágio das necessidades de cada grupo social e, ao mesmo tempo, serviu de alavanca para a busca de mais conhecimento que permitisse o avanço dos instrumentos teóricos e tecnológicos facilitadores de cada vez maior conforto material e espiritual ao Homem.
Por isso, o conceito de estudos superiores não pode ser padronizado e enquadrado a partir de um determinado momento histórico de qualquer civilização que seja. Quer isto dizer que todas as comunidades que povoam a terra, desde o momento em que se constituíram e começaram a organizar-se para dominar o conhecimento para o seu próprio benefício, tiveram que escalonar o acesso a este conhecimento, de modo que o seu domínio fosse adquirido em conformidade com a idade e capacidade dos seus membros. Por isso mesmo, nem todos chegavam aos patamares mais altos e, por isso mesmo também, existe o princípio de especialização como consagração da necessidade de distribuição de tarefas. Platão, na sua obra “República”, reflectindo sobre a Cidade Ideal, não faz mais do que consagrar o primado da filosofia sobre as outras formas de conhecimento na liderança das sociedades, considerando ele que filósofo é aquele que atingiu o patamar mais alto da sabedoria, e por isso mesmo ele estaria mais apto para dirigir os destinos da cidade.

Publicado no Jornal noticias do dia 24 de Novembro de 2010