Ponto de partida
Destacou-se recentemente nos jornais, rádios, TVs e revistas a notícia de que a comunidade muçulmana através de um grupo de teólogos teria se juntado para reivindicar autorização para que seus educandos passem a usar lenço ou burca nas escolas no lugar de uniforme estabelecido pelas escolas.
Foi então que o Conselho de Ministros através dos seus Ministros de Educação e da Justiça Zeferino Martins e Benvinda Levy respectivamente viram-se na contingência de deferir essa pretidão através de um despacho de autorização, conforme a exigência da comunidade acima referenciada.
Um outro destaque que não se ignora, são os aplausos de alguns intelectuais diante desta decisão, refiro-me concretamente ao Sociólogo Elísio Macamo, que no seu estilo característico escreveu um artigo no jornal noticias mostrar a “genialidade” do governo ao reconhecer a liberdade do outro na vida em sociedade de direito democrático, não obstante condenar a inconsistência, incoerência e inconsequência da acção governativa no que se refere ‘a laicidade emanada na Constituição da Republica. Porque no seu entender, deveria também proibir os seus Ministros de usarem lenços em nome dessa laicidade do Estado etc… de modo a ferir a sensibilidade de todos na mesma proporção!
Confesso que, lendo o referido artigo em algum momento fiquei psicologicamente paraplégico porque não vejo em que momento o legislador no exercício das suas funções pretende ferir sensibilidade de qual que seja grupo social! Sei que este autor aqui pretendeu ressonar o senso comum mas e dai?
Este autor a dado momento faz uma retrospectiva do caso lenço, para nos mostrar que “ a proibição do lenço ‘e fruto de colonização que via no porte do lenço o símbolo duma cultura africana atrasada (…) se não, o Samora Machel que também veio desincentivar o seu uso sob pretexto de que escondia sujidade numa sociedade que se pretendia civilizada” o que não vejo pessoalmente ‘e a relevância desta retrospectiva! Quantas coisas não deixamos para traz por conta dessa colonização que não teve nada de positivo? Para não falar dos ensinamentos Samorianos!
Ora, o conceito de tolerância obedece vários sentidos, para este caso concreto vale o entendimento de que, ela “consiste em ter crenças e aceitar dialogar com outras pessoas que tem convicções diferentes. ‘E chegar a um consenso com outras para estabelecer uma coexistência dinâmica e engajar-se em um processo de enriquecimento mútuo permanente”. [1]
Porem, este processo deve emanar um outro mais complexo ainda que é de: Compreender, ponderar, julgar usando inteligência para chegar a uma certa conclusão que se espere a mais coerente – só assim estaríamos a tolerar com racionalidade. Ate quando a medida do Conselho de Ministros em relação ao lenço nas escolas obedeceu cabalmente este princípio de não só tolerar mas o fazer com racionalidade devida? Este ‘e o pano para manga, neste dialogo sobre a “liberdade cultural ou tolerância” na educação para um Estado de “Direito Democrático” que poderemos perceber no passo a seguir.
Multiculturalismo na educação
A forma mais racional de interpelar este fenómeno de coexistência, pressupões antes de tudo, o entendimento do que um filósofo de educação se referiu, “as carências do ser humano não são ontológicas mas sim axiológicas”
Em mim, o entendimento de algumas manifestações acima referenciadas tornaram-se inteligíveis quando Vera Werneeck[2] Apud SILVA (1994:90) mostra que,
A Sociologia da Educação não esta normativamente preocupada com as finalidades da educação, com a natureza do conhecimento educacional, com as melhores formas de organização dos sistema educacional ou de desenvolver melhores métodos de ensino ou de avaliação embora todas essas preocupações sejam legitimas e possam ser iluminadas por meio das contribuições da Sociologia da Educação, esta preocupada, em vez disso, em compreender como a educação implica a construção da sociedade, na construção da estrutura social e do sujeito social. A Sociologia da Educação esta preocupada em compreender de que forma a educação institucionalizada esta envolvida na dinâmica social e quais são suas relações mutuas
Por quanto, numa reflexão sobre factos que ocorrem na educação as duas perspectivas devem ser contempladas e não se pode pensar na educação deixando de lado o ângulo objectivo e filosófico como o de estabelecimento de objectivos, metas e referências de avaliação do que seria a sua finalidade. Porem, isto faz-se em ciências educacionais como a Psicologia, a Didáctica e Filosofia de educação.
Ainda na colocação da Werneck (2008) Apud CADAU (2002:74) mostra que,
O multiculturalismo ‘e um termo importante e polissémico na sua relação com a educação, (…) ela pode ser entendido como algo que consiste na justaposição ou presença de varias culturas em uma mesma sociedade e também na relação entre elas.
Para esta reflexão vale o entendimento sobre educação segundo a qual ‘e um processo pelo qual leva-se o educando a reconhecer, a apreender e hierarquizar os valores de modo próprio e adequado para que possa situar-se no mundo como pessoa e como personalidade. Isto ‘e, cada povo, cada grupo ou comunidade humana, interfere na natureza a seu modo e resolve os seus problemas, ultrapassa os obstáculos e desafios, que ela lhe propõe de maneira própria e diferente. ‘E certo também que a educação tem como fim último humanizar o homem, o que pressupõe o seu contínuo aprimoramento e que o mesmo deve respeitar as exigências da totalidade humana.
Portanto, um pleno reconhecimento de que, o homem conhece-se como incompleto, imperfeito, em busca constante de aprimoramento, Esse ‘e o fundamento da educação sem o qual ela não se justifica. ‘e difícil pensar numa educação relativizada sem acabar com a sua razão de ser, quer dizer, uma pedagogia de livre arbítrio em nome do multiculturalismo! Quando falamos de uma tolerância racional estamos a chamar razão a estas ponderações indispensáveis!
Há um aspecto extremamente interessante na primeira Lei do Sistema Nacional de Educação (SNE) depois da independência ( Lei 4/83 de 23 de Marco), relacionada com o objectivo pela qual se propunha que era, “(…) formação do homem novo, um homem livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista” que era Moçambique. Deste modo ficava clara a necessidade transformadora da educação não ao apego aos dogmas religiosos! Já que em antropologia social todas as sociedades primitivas tem alguma fé religiosa.
No reajustamento da Lei que acima nos referimos, o legislador nas alíneas a) e b) ambos do artigo 3 da Lei nº 6/92 de 6 de Maio (objectivos gerais), diz que o SNE se propõe a: “erradicar o analfabetismo de modo a proporcionar a todo o povo o acesso ao conhecimento científico e o desenvolvimento pleno das suas capacidades; deve garantir o ensino básico a todos os cidadãos (…)”. Ora, o nosso entendimento do espírito e da letra da Lei do SNE ‘e de uma escolarização obrigatória e daí nasce uma questão que não quer calar. Por que então a escolarização obrigatória? Qual ‘e o sentido axiológico do ensino obrigatório se ela não ‘e transformadora?
Mais, como então, conciliar o respeito as peculiaridades culturais religiosas e promover a educação transformadora por definição? Porque o nosso entendimento da laicidade da educação em Moçambique esta intrinsecamente ligada `a seu valor e fim ultimo que ‘e a transformadora numa situação em que ninguém ignora a acção autoritária e dogmática do passado em sua área.
Porem, numa clara revelação hipócrita da nossa demagogia, parcialmente viemos aplaudir o multiculturalismo com assunção de todas as formas culturais, seus procedimentos e costumes muitas vezes inadequadas, desrespeitosos e injustos para com o ser humano como são as buscar ou lenços se quiser, esquecendo que ‘e inconcebível uma ciência diversificada e própria para cada grupo social! O conhecimento científico ‘e de toda uma validade universal nas devidas circunstâncias, entende-se não uniforme.
Num estado de direito democrático a educação pública deve ser laica, respeitando as diferenças étnicas, religiosas, sexuais, de todos. os que querem ter educação religiosa, devem tê-la em escolas religiosas, conforme o seu credo.
O deferimento dado há dias aos muçulmanos em relação ao uso do lenço, Werneck faz nos concluir que poderá ate certo ponto, vir-se a valorizar diversidades culturais que, no passado foram praticamente ignorados, vítimas de preconceitos e condenação.
Escola, novo meio de vida[3]
Mesmo para dar uma pausa a esta reflexão, muitas das reflexões sobre algumas medidas que tem vindo a ser tomadas pelo governo como forma de estabelecimento de limites de accao de cada um de nos, neste caso concreto, em satisfação de alguns grupos sociais como os religiosos ou concretamente para os muçulmanos, tornam-se um tanto e quanto menos úteis porque as mesmas não são delimitadas.
Por exemplo, a discussão em torno da decisão dos Drs. Zeferino Martins e Benvinda Levy deveria ser entendida nos seguintes termos, o Ministro da Educação, atraves do Dr. Zeferino Martins ‘e chamado a intervir neste assunto porque mexe com a questão cultural e de interacção social na Escola não no sentido de “direitos humanos” muito menos de “direitos fundamentais”[4]. Portanto, a discussão não devia de forma alguma tomar este rumo como tenho vindo a acompanhar. Já a Dr.ª Benvinda Levy, porque responde ao mais alto nível pelos assuntos religiosos no Ministério que dirige.
Vejamos por exemplo, há uma tendência de distrai-nos do essencial que ‘e a problemática do multiculturalismo na educação para um debate que em nosso entender esta relacionado com “o problema da fundamentação filosófica dos direitos humanos”! ora, em nos, este ‘e outro debate. O mais grave ainda ‘e da precariedade teórico conceptual em sua articulação entre a teoria e a prática, se calhar seja fruto de observações e opacidade parciais dos nossos intelectuais, influenciadores das políticas públicas em relação aos factos, acabando por abrir precedentes num futuro próximo.
Afirmar que o Estado ‘e irresponsável, inconsistente e inconsequente 'e tão simples quanto a justificação que se apresenta por exemplo, a de que, “ deveria proibir o uso de lenço também para as Ministras enquanto funcionarias publicas”. O mais simples ainda ‘e pensar que, o Estado não seria mais ou menos laico se não tivesse uma direcção que atende assuntos religiosos no seu governo.
O que deve ficar retido ‘e o que nos deixou Kant em Oliveira (2006)[5]
“...todos os deveres, pelo simples fato de serem deveres, pertencem à ética; (...). Assim, a ética ordena que eu tenho de cumprir um compromisso assumido em um contrato, mesmo que a outra parte não pudesse me coagir a tanto, mas ela assume a lei (pacta sunt servanda) e o dever correspondente como dados pelo direito. A legislação de que promessas feitas têm de ser cumpridas encontra-se, portanto, não na ética, mas no direito (jus). A ética apenas ensina em seguida que, mesmo se o móbil ligado àquele dever pela legislação jurídica, a saber, a coerção externa, for deixado de lado, a ideia do dever é por si só já suficiente como móbil (S. 230).
Portanto, quem define os valores da escola e da educação? ‘e por isso que, antes chamamos a racionalidade em todas as “tolerâncias e liberdades” que pretendemos para uma educação que tem um papel transformador, sendo deste modo, difícil o assumido multiculturalismo para uma escola que se preze novo meio de vida. Apela-se “ética e racionalidade” no cumprimento do dever de que, o MNED – Ministério da Educação ‘e que detêm o poder regulamentar. Pelo que, não devia ser atacado pelo ópio dos dogmas religiosos, fundamentalistas. Pelo bem de todos nos o traje nas escolas ‘e feito nos termos dos regulamentos próprios. Não da fé!
PS// Não estranhamos o “muti” dos Magistrados mas da ONP (Organização Nacional dos Professores), INDE (Instituto Nacional de desenvolvimento de educação), Faculdades de Educação, Gestores de Educação, Gestores Públicos, Filósofos etc.
Referências
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[1] (Santos 2012 Apud CHELIKANI, 1999, P.30)
[2] Doutorada em filosofia, Universidade Gama Filho; Professora Titular da Universidade Católica de Petrópolis no Rio de Janeiro. Ensaio: aval.publ.Educ.. Rio de Janeiro, v.16, n.60, p.413-436, jul./set.2008
[3] Subtítulo emprestado do Jean Barberet (1976)
[4] O natural e os de opinar, de impressa e associativismo)
[5] NYTHAMAR DE OLIVEIRA PUCRS, Porto Alegre / pesquisador da Humboldt-Stiftung e do CNPq. 2006
*Joaquim A. Chacate
Gestor de Educação
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